Pequenos traumas de uma vida cotidiana

by - março 13, 2019

Foto: Google


Desde pequenos em nossas mais remotas memórias temos a consciência de nos acostumar que as coisas são do jeito que são e que não vão mudar. Quantas vezes ouvimos dos nossos pais ou avós que as coisas são da maneira que são desde que o mundo existe? Somos programados, seguimos manuais de instrução e concordamos com as coisas porque sim e ponto final. A gente não questiona ou não procura entender e, quando pensamos diferente, ainda nos sentimos mal. Será que somos loucos, afinal?


A gente aceita a ir dormir tarde e acordar cedo e a não ter uma boa noite de sono. A gente se acostuma a pegar condução lotada, pagar caro a passagem e a ouvir gracinha no trabalho. A gente se acostuma a não ouvir as pessoas, a gente acostuma a querer impor nossa opinião. Não queremos debate, conciliação. Queremos imposição. A gente aceita que estamos na era digital e é normal não desgrudar nossos olhos – e cérebros – dos nossos celulares. A gente se acostuma a ter amigo de bar e, mesmo assim não ter amigo algum. A gente se acostuma a transportar nossa vida para as redes sociais, a montar um perfil bonito com fotos atrativas e postagens sobre o quão legal foi o final de semana ou a viagem de natal, sempre rodeado de amigos e felicidade. Tristeza não existe e tudo é perfeito. A gente se acostuma a mascarar nossos sentimentos em prol de um perfil bem aceito. A gente apenas se acostuma. 

A gente se acostuma a ser maltratado, a gente aceita que sair com medo na rua é algo normal. A gente se acostuma a ver as manchetes de agressão e violência no jornal. A gente aceita todo o roubo e desonestidade, afinal é o Brasil. A gente se acostuma a ouvir que mulheres, negros e qualquer outra minoria são inferiores. A gente se acostuma a ouvir discursos de ódio e intolerância apenas por amar e sermos quem somos; A gente se acostuma a ver mulheres ganhando menos desempenhando as mesmas funções que o homem; a gente aceita que a culpa de um estupro é sempre dela, que, estava pedindo para ser atacada. A gente aceita o machismo como uma coisa normal por ser milenar. A gente aceita que tudo no Brasil tudo acaba em pizza, cerveja, futebol e samba; discutir o capítulo da novela é mais importante que política. 

A gente se acostuma a sempre estar correndo atrás de algo mesmo sem ter a menor ideia do que. Temos pressa, muita pressa. Esperamos o término das matérias na faculdade, o diploma, a promoção no trabalho. Estamos com a cabeça no “depois”, mas e o agora? Você vive? E ao chegar no depois? Passamos tanto tempo idealizando uma vida baseada em questões futuras que nos esquecemos do dia de hoje, do agora. A gente aceita ter pressa e engolir o café da manhã correndo. A gente se acostuma a engarrafamento, poluição e barulho alto. A gente se acostuma ao ouvir sobre o aquecimento global, sobre catástrofe natural, sobre um mundo sem expectativa. A gente aceita enchente, deslizamento e extinção. Mas a gente só se acostuma.

A gente se acostuma a fugir do sol e se esconder da chuva, a fechar a janela pro vento não entrar. A gente não tem tempo pra olhar pras estrelas, não há espaço na agenda pra um piquenique no meio da tarde, para visitar a avó. A gente aceita a pensar no eu e ignorar o nós. A gente aceita pagar academia e não correr na praça. A gente se acostuma a comprar um aquário e continuar jogando lixo no rio. A gente se acostuma a reclamar do calor e a não gostar do frio. Nada está bom, nada é o suficiente. E assim por diante em uma sucessão de pequenos traumas cotidianos que estão intrínsecos em nossa vida e nem percebemos; os ponteiros dos relógios continuam rodando e nossa rotina insana se desenvolve. Mas nada disso importa, nada disso é relevante.


A gente apenas se acostuma.

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